Uma Cabana na Montanha: Homenagem à Cabana Frei Otto de Res em Itu
CCS, 4 de setembro de 2018
1
As pernas
Quero realmente me levantar da lama: mas ela está grudada
à minha pele de maneira atraente, minha sujeira
me sustenta, me move de lugar, me aprofunda nela.
Rubens Espírito Santo, Buraco, 26 de agosto de 2018
Eu estava estabilizada – três pernas pavimentavam meu caminho – impediam-me de andar –, estava sobre um tripé – inútil. Hoje, não estou com ele o tempo todo, nas poucas horas que estou sem ele, encontro inconstância – incerteza – instabilidade – que me fazem andar de forma errante, por onde encontro vários lamaçais – neles me afogo – às vezes posso trazer de seu fundo um desenho – um poema – às vezes reencontro minha terceira perna boiando – ela não me abandona – mesmo que eu me despeça dela – ela é várias – como uma mergulhia, se enraiza em outras terras depois de separada da sua origem – o lamaçal é feito do sangue que dela jorrou quando a tirei de mim: ela está aí – sozinha – principalmente onde eu não posso ir – avistá-la é ver um centímetro do infinito – e caso eu aceite não fazer só aquilo que posso e não ir – e ficar com ela na diástole do meu coração – entre um batimento e outro – posso até ouvir o dela destilando o meu: depois de você – diz o coração dela segurando a porta que range quando eu bato – de você entrar e entregar as outras duas pernas.
2
Búfalos
[...] só quando meus olhos não alcançarem mais, quando olhar e não ver mais nada, começarei
realmente a esvaziar o pote sujo de merda que sou.
Rubens Espírito Santo, Buraco, 26 de agosto de 2018
De que vale a minha voz se ela contiver apenas uma frequência? De que vale achar que sigo minha sina se aceito apenas a comum amizade de qualquer ser suficientemente dócil – e não a pré-história em carne viva dos búfalos que rodeiam o bosque de meu estômago? Que soe a trompa da lenda de sua caça ao desenhar – e me faça ver sua mentira – eles estão me caçando o tempo todo – quando, na verdade, a próxima a morrer de fome seria eu – mas ainda não sei usar uma arma de caça. Acredito, ainda, na dureza dos muros que me protegem deles – mas o que eu achava ser um muro sólido é só minha sombra fugidia – mesmo assim posso tentar me sensibilizar do limite dessa sombra e ver que ela gera nosso abrigo – eles moram no mesmo lugar que eu – em situação de cabana – o único refúgio não é a cabana – mas dançar com os búfalos ao som da trompa de caça – a ninguém.
3
Uma montanha
Não dou conta de contar para mim mesmo o que me atormenta […]
Rubens Espírito Santo, Buraco, 26 de agosto de 2018
Preciso andar por horas – com duas, três ou até nenhuma perna – esfolar meus pés e subir penosamente pelas minhas verdades até chegar ao cume de uma montanha desconhecida – para ver que sua base nunca esteve fixada em minha memória – e que mesmo assim, ela me leva para seu começo – despertando-me para seu irremediável fim.
Os músculos palpitantes da montanha dificultam qualquer andar tranquilo e me lembram de esquecer tudo que vi se quiser atingir a visão que os insetos habitantes do fundo das colinas veem. Sua altura – os degraus de sua escada anônima camuflada por musgos escorregadios – me remonta ao esforço que será preciso para escalá-la e recuperar a poesia que perdi – e que, ao topo, o ser da montanha se desdobrará – ao passo que eu dobre meus joelhos.
Não posso saber sua localização ou nome – não posso inclusive colocar em suas terras qualquer bandeira com o meu. Minha deficiência em aceitar sua história – ou melhor, em aceitar tudo que não deriva dela – grita; sua lei proíbe minha juventude tardia e falsa – meu paraíso terrestre – de entrar; me proíbe de isolar a essência íntima da minha insuficiência – nomeá-la apenas a paralisaria – enquanto na verdade ela me move – mais do que eu a movo – mesmo que eu não aceite – o desenho – ou o poema – a nomeia em sua própria língua – não sublima nada – mas é sua terceira perna – aquela sem a qual eu não posso viver.
4
O olho da cabana
[...] tenho que levantar e seguir, ancorado ou não, pernas
quebradas ou não, tenho que me rastejar em direção à luz.
Rubens Espírito Santo, Buraco, 26 de agosto de 2018
Um desenho pequeno – ou uma inscrição à mão em letras trêmulas – tudo que tinha era um guardanapo no bolso – foi o convite que precisava para ver a entrada da cabana da montanha na qual irei dormir nesta noite enregelada pelos ventos da minha imaginação perversa. Os guardas do caminho incerto deste papel amassado fizeram o cadastro de perdição minha e, só aí, empreenderam uma topoanálise que me fez sair fora de mim – e, consequentemente, sair de casa – para enfim encontrar uma cabana: pela sua janela, vejo uma pequena lâmpada – é o olho da cabana – que me vigia por um rastro – um fio de luz: um caminho estreito o suficiente para aumentar minha atenção e fazer com que minha teimosia seja penetrável pela vigilância – mesmo longe, sua luz é suficiente para me fazer ver as grades em meus olhos – para ver o calendário da minha vida – cuja duração ficou espessa e imperceptível ao mesmo tempo – para guiar meus passos errantes na escuridão que encontro nas fibras instáveis deste pequenino papel – através dele, ingresso outra vida – com análoga intensidade, sou rapidamente expulsa se me recuso a comprar – e a pagar cada vez mais caro – pelo mesmo ingresso todos os dias – de presenciar o espetáculo – o trabalho velado pela pequena lâmpada da cabana – e sua existência obstinada a construir sonhos – com seu olho, ela sabe ler as linhas – das quais sou apenas o diagrama – apagadas porém eternamente inscritas – em minha alma.