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O devir tem a ver
com a criança na cama dos pais.
10 de novembro de 2019
Este é o 2º relatório do Seminário da Anna Israel sobre os Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix Guattari.
I
1. Esta semana fui na Coleção de Cadernos da Anna.
2. CONTEXTO: nesta coleção tem - pelo menos - 15 anos da vida do Rubens - tudo datado em cadernos.
3. Existe um quarto na casa da Anna só para estes cadernos
4. Há pelo menos 15 anos o Rubens faz listas diárias e recortes de jornais - isso só da parte que eu vi, sem contar os cadernos mais antigos que não estão lá.
5. Ele escreve sobre compras feitas, o que ele almoçou, quem cozinhou, com quem ele brigou, ideias para desenhos, rascunhos de mapas. Qualquer coisa é motivo para pensar.
II
"Acho que escrever é um devir alguma coisa."
Gilles Deleuze, O Abecedário
III
6. Por um lado sei que me é impossível escrever. A fala é insuficiente diante da coleção de cadernos, dos desenhos de sexta, é insuficiente por que a fala não basta.
7. Por outro lado sei que devo continuar a escrever.
IV
8. Não basta fazer tudo direitinho, não basta apenas acordar cedo e ler o jornal, não basta ler e estudar, não basta desenhar - não basta seguir fórmulas - as fórmulas estão vencidas - não existe mais um remédio para o nosso tempo. Buscamos feito pragas uma poção que dê conta de uma insuficiência, que masturba minha carência, que me faça acreditar que sou uma boa menina e por isso há de vir os frutos MAS NÃO ME ENSINARAM A LUTAR PELOS MEUS FRUTOS, POR QUE NÃO ME ENSINARAM A PLANTAR?
9. Aprender a plantar não é apenas esperar pelos frutos, mas é lidar com a frustração, é ter fé, resiliência, é acreditar, por que viver é só tentar, viver é a próprio guerra de seguir tentando - e aprender a viver com isso, com o vazio, com isso que sobra, com aquilo que não sei.
10. Aprender a plantar é lidar consigo mesmo, com os desejos e expectativas - pode-se dizer que plantar é um exercício de solidão.
11. Aprender a plantar é também estar diante do nosso podre.
12. Plantar é o começo de um lugar que é seu, é um lugar sagrado e intocável, um lugar que pode estar em contato com o devir-criança, com esta "infância do mundo", com um lugar que nos foi roubado.
13. Plantar é tentar recuperar este lugar.
IV
TEMENOS
"São como que contraespaços.
As crianças conhecem perfeitamente
esses contraespaços, essas utopias localizadas.
É o fundo do jardim, com certeza,
e com certeza o celeiro, ou melhor ainda, a tenda de
Índios erguida no meio do celeiro, ou e então
- na quinta-feira a tarde - a grande cama dos pais.
E nessa grande cama que se descobre o
oceano, pois nela se pode nadar entre as cobertas;
depois, essa grande cama e também é o céu,
pois se pode saltar sobre as molas;
e a floresta, pois pode-se nela esconder-se;
e a noite, pois ali se pode virar
fantasma entre os lençóis."
Michel Foucault em "O Corpo Utópico, As Heterotopias"
Os cadernos do Rubens são inventários. Quando ele diz que sua visão não é retilínea tem muito a ver com isso. Os cadernos são uma data de uma investigação, de resgatar este lugar como a cama dos pais.
Rubens me perguntou na sexta de manhã o que diferencia ele das outras pessoas - entre muitas coisas, era para eu citar apenas uma. Citei que ele é um cara que pensa. Isso já é raro, mas não é só isso. O pensamento do Rubens é sofisticado, mas acho que um fato que diferencia, que chega a ser divino, é que ele não fincou em um só lugar, ele permitiu que o pensamento fosse atravessando todos as esquinas do seu corpo, criando uma teia, criando uma organização que é capaz que flagrar minúcias.
Então hoje o seu lugar sagrado não é o caderno, não é a sessão de desenho, seu lugar sagrado é a sua própria vida.
