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QUESTÕES TERRÍVEIS SOBRE COMO TER UMA OBRA

RUBENS ESPÍRITO SANTO

2 de setembro de 2018

(Esboço)

Revisão - CCS

  

 

  1. Obra: contexto exposto aqui — é eminentemente prático, isto é, pragmático, quero servir algo que possa ser usado, consumido, quero uma escrita para ser consumida, devorada, quase comestível, a escrita para mim é algo comestível. Como tem que ser arte, arte que não é consumida não é arte. A obra é consumação de algo, é tempo devorado, é espaço devorado, é algo sendo devorado pelo devir da próxima coisa, isto é: preciso de mim em pleno exercício de fogo, fazendo, plasmando meu amanhã, estou construindo minha casa, minha morada, meu exercício de ser eu, a obra é isto, eu dando conta de me pôr em andamento, sem as pernas de ninguém, eu enfrentando meu pesadelo de me relacionar comigo, de enfiar a mão goela abaixo de mim mesmo e retirar a fala que só cabe a mim proferir sobre mim. Dar meu testemunho, para isto tenho que criar meus inimigos. Fazer meus desafetos. De gente boazinha o inferno está cheio.

  2. Condições para ela existir: enfim as condições da obra, a obra é um baita contexto, um complexo de relações intrincadas com a vida, é orgânica como meu próprio modo de escrever e resolver coisas. Me implicar com as coisas. Sem uma rotina de trabalho árduo não há obra, sem foco e organização não há obra, sem planos não há obra, sem recursos, sem pôr coisas no mundo tudo é só da ordem do delírio. Colocar coisas no mundo passa também por um equilíbrio emocional, inclusive que possa dar conta de um possível desequilíbrio. Ser estável é desejável para poder também suportar a instabilidade sem ficar louco, a rotina é necessária para lidar com a monstruosidade que é o devir e o preço a se pagar para ter algo no mundo que você possa chamar de seu. Um lugar para voltar, ter um lugar para voltar é sanidade e isto passa pela obra que cada ser humano terá que inventar para si — este lugar para retornar tem que ser forjado no calor da fricção de você com você e suas limitações, seus contornos. 

  3. Uso do tempo? Como uso meu tempo, como consigo ficar comigo mesmo, como conseguir fazer companhia para si mesmo. Como conseguir passar um tempo proveitoso consigo mesmo? Como serei capaz de aproveitar de minha companhia quando estou só? A importância da solidão ativa na vida de um artista.

  4. Não existe artista que não tenha obsessão por si mesmo antes de ter por alguém. Há, onde algo que eu desconheço de mim, algo que me antecede como eu. Preciso ficar sozinho comigo para formular perguntas essenciais, para dar tempo, ter tempo para que coisas profundas nasçam em mim. Ter capacidade de formular, plasmar meu mundo interno. Sem capacidade de plasmar o mundo interno, fica difícil ter obra, isto exige muitas horas de convívio maciço da pessoa com ela mesma. Um convívio plástico de ser capaz de transformar em obra seu cotidiano, sua casa. Ou seja, colocar as mãos na matéria da sua própria vida e moldá-la, intervir nela.

  5. Escritura: pôr para fora o que você pensa, escrever para o outro, não ter medo de se expressar pela escrita, não ter medo da própria língua que você fala, não ter medo de escrever errado, de conjugar errado, de acentuar errado, de coordenar a frase errado, sem erro expressivo não tem obra expressiva. Colocar a mão na massa. Colocar as mãos na massa. Ser exagerado quando se escreve. Ser excedente quando se escreve. Ser perdulário com a escrita - enviar as porras que você escreve para as pessoas, tirar da responsabilidade do escritor de escrever, todos podem e devem escrever. Escrever é um modo essencial de comunicar ideias, pensamentos, valores.

  6. Leitura: ter uma biblioteca viva na cabeceira da sua cama. Ter livros que te fazem feliz ao seu lado, de homens que você admira, livros de formação de caráter, livros de homens que foram para lugares onde você desejaria ir. Livros de homens ou mulheres que enfrentaram coisas que você sabe que poderá enfrentar. Livros-gatilho para você vencer seus medos, ou ao menos dialogar com eles. Uma obra não se obtém sem diálogo com seus fantasmas, quem guarda os fantasmas no porão nunca terá obra, obra exige maturidade e solidão. Solidão como dispositivo de ataque, como ferramenta de inspeção, como afirmação de um lugar próprio no mundo para chorar e forjar seu próprio caixão para o dia da sua morte, isto é, um lugar de interiorização e poder de suportar seu destino, um lugar de estar em repouso consigo mesmo.

  7. Parâmetros gerais e específicos: ler o mundo é tão importante quanto ler um livro, ler o outro é fundamental, ler o que o outro está pedindo de mim, qual é o pedido que o outro está me fazendo quando me pede algo, não ser ingênuo com o desejo do outro. Leitura é uma forma(?) poderosa de estar no mundo, de produzir uma obra, de gerar um estado capaz de produzir para mim mesmo uma condição necessária para eu poder fazer. Parece complexo, mas o que quero dizer é o seguinte: preciso me acompanhar quando estou em companhia do outro, o outro não pode ser uma forma de eu me esquecer do meu rolê, meu rolê passa por eu me amar antes de amar alguém. De eu me querer antes de querer qualquer coisa, se eu não me acompanho e não plasmo meu mundo, não tem o que eu entregar ao próximo.

  8. Do maior para o menor: existe uma hierarquia no mundo e não fui eu que a criei, existe uma ordem nas coisas e não fui eu que decidi isto, por exemplo, a língua portuguesa possui 26 letras, não possui 27 ou 36, não posso escolher uma letra para usar que esteja fora deste alfabeto. Portanto não vamos ser bobos, o jogo é fundamental, quem não joga não vive. Viver é estar num jogo que nos constitui, intrínseco a nós, decisivo. Sendo assim, em níveis de conhecimento, de entrega, de complexidade, de valores, precisamos nos inteirar disto. Na prática é o seguinte: vivemos sob leis, algumas podemos ferir; outras, se as feríssemos seria letal, comprometeríamos o rolê todo, ainda que não saibamos dele. Acho que uma lei que não pode ser ferida é que não existe artista sem obra, e não existe obra sem silêncio e solidão. Silêncio e solidão postos aqui como potência, como afirmação da vida. Outra lei que não pode ser ferida é que somos geridos, não estamos no controle. Ainda que tudo leve a crer nisto. A obra passa essencialmente pelo desconhecido do desconhecido. E o que sabemos é nada. O que sabemos não interessa, interessa o que não sabemos.

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