BURACO
RUBENS ESPÍRITO SANTO
Sábado, 26 de agosto de 2018
Eu preciso achar um fio condutor que me ligue, que me conecte. Mestre, caralho, que asneira é esta, como pode haver um mestre se o ar que respiro é fundamental para eu viver, e eu claramente não sou o ar; como pode haver um mestre diante do canto dos passarinhos — se eu mal balbucio; como pode haver a merda de um mestre em mim se eu ainda imploro precisão. E sou obrigado a eliminar uma frase cuja complexidade não dou conta. Mesmo o outro é uma invenção minha, pois passa pelo meu aparelho cognitivo que lê esse outro como bem entender, que pode interpretar um fato de maneira totalmente pessoal e portanto restrita, não tendo mesmo nada a ver com o fato em si. Óbvio que não pode haver em si, uma vez que isto que vejo já é outra coisa em mim. Meu deus, quanta contradição. Sou esmagado não pelos fatos, mas como estes mesmos fatos ocorrem dentro de mim e não fora de mim, não tenho acesso mesmo ao que ocorre nem dentro nem fora de mim, o que percebo do mundo e dos fatos sou eu, ou melhor, eu sou apenas uma redução da dimensão estrondosa que é a vida. Quem se nomeia mestre só pode ser um merdinha presunçoso, que não entende o fluxo eterno da vida, eu Rubens Espírito Santo sou apenas um caminho de passagem, em primeiro lugar para um nome que me deram, depois para um corpo dado num espaço e tempo específico, como ser humano só posso querer ser parte de uma coisa muito maior que eu, que é esmagada na minha cara dia após dia, dia após dia percebo o abismo enterrando suas unhas na minha pele dura, cavando sulcos mais fundos do que posso suportar, para saber com exatidão que não sou digno da palavra mestre, porque um mestre é simplesmente um fio de água que escorre pela beira da calçada depois da chuva, espelhando de relance minha ignorância eterna. A vida se digladia dentro de mim, forçando todos os meus limites, expandindo a noção caricata que tenho de palavras essenciais, que nem ouso pronunciar, a estas palavras essenciais me rendo, rendido e cabisbaixo, minha vaidade se esvai, e percebo o quanto sou vil com a vida, com a força eterna de viver e morrer, dentro deste fluxo posso aprender alguma coisinha, a este próprio minúsculo pedaço de corporeidade que ocupo neste ínfimo espaço, me doo na tentativa de existir, não que o faça mesmo. Como posso ser mestre se nem ao menos me sustentar em pé direito eu consigo. Na trama da vida me embromo, me atrapalho, me confundo, balbucio.
Empenhados em viver, em amar, em produzir, em fazer arte — esquecemos o essencial: esquecemos que somos apenas seres rastejantes e sujos, se existe um mestre ele é imundície. Quero realmente me levantar da lama: mas ela está grudada à minha pele de maneira atraente, minha sujeira me sustenta, me move de lugar, me aprofunda nela. No lixo emocional me locomovo, preciso me localizar para voltar a viver, me localizar e me afastar de mim ao mesmo tempo o máximo que eu puder, só quando meus olhos não alcançarem mais, quando olhar e não ver mais nada, começarei realmente a esvaziar o pote sujo de merda que sou. Não dou conta de contar para mim mesmo o que me atormenta, o fio da meada da minha história de desespero, enfim: tenho que levantar e seguir, ancorado ou não, pernas quebradas ou não, tenho que me rastejar em direção à luz. Não pode ser o que eu penso, não pode nem mesmo ser o que eu sinto, urge que para eu estar vivo eu me anteceda, me fira mortalmente de mim mesmo, sem descanso em plena fuga alucinante num terreno descampado descubra o sentido de chegar num lugar que não existe, a este lugar inexistente chamarei minha morada movediça, recalcada, ao que sempre retorna, ainda que sempre retorne, nunca reconheço seu rosto totalmente, então ele chega muito perto e me esfaqueia onde mais dói, ferido, muito ferido, sem espaço de manobra descubro que ainda posso ser gente e, então, só então amar.